Bom Balão – O estranho fenômeno das “figurinhas para o meu filho”

Bom Balão - HQ DIsneyAproveito a estreia da coluna Bom Balão para publicar um estudo sem qualquer método ou qualificação sobre o público leitor de quadrinhos antes e depois do efeito graphic novel.

Como tantas outras crianças que tiveram os quadrinhos como aliados, tanto no processo de alfabetização quanto na criação do interesse pela literatura, entendi que, em determinado momento, o mundo de heróis, patos falantes e corridas malucas ficaria para trás.

Isso aconteceria em etapas distintas da vida de cada um, fosse ao fim da infância, fosse ao nascimento do primeiro fio de barba. Em raríssimos casos, no entanto, poderia persistir, mas sempre acobertada por alguma desculpa, como “essa figurinha é para o álbum do meu filho”, fenômeno facilmente observável em qualquer banca de jornal.

Os casos irremediáveis poderiam encontrar algum conforto em cartuns e charges ou nas tirinhas diárias espremidas entre o horóscopo e a cruzadinha dos jornais. Os mais arrojados buscariam consolo em histórias ilustradas de perfil artístico, também conhecidas como quadrinhos eróticos.

Fato é que o universo dos super-heróis não faria parte da vida adulta, pelo menos não de uma que quisesse ser levada a sério. E isso se perpetuaria por longos e tenebrosos invernos ou até os anos 80, pelo menos. A grande maioria dos jovens que estava em vias de se tornar gente grande naquela década havia completado o ritual de purificação, deixando para trás os dias de Metrópolis e Patópolis.

Qualquer coisa que não atingisse a densidade de “Crime e Castigo” era considerada supérflua ou infantil. Machado de Assis era a bússola e as batatas eram do vencedor. Personagens que vestiam a cueca por cima da calça não tinham vez. Foi nesse período histórico conhecido como a os anos da lata* que a indústria dos quadrinhos cunhou o termo que iria reorganizar todas as peças da geopolítica mundial: graphic novel.

Bom Balão - Graphic NovelsSegundo estudos avançados de leitores da Wikipédia, o termo graphic novel (novela gráfica, ou algo assim) foi utilizado pela primeira vez em 1964, mas se tornou popular entre os leitores de quadrinhos apenas em 1978, com a publicação de “Um Contrato com Deus”, de Will Eisner.

O grande público, no entanto, só conheceria a denominação nos anos seguintes, com o sucesso de obras como Maus (primeiro volume reunido em 1986), de Art Spiegelman, “Watchmen” (1987), de Alan Moore, e “O Cavaleiro das Trevas” (1986), de Frank Miller. Assim, na década abençoada pelo cubo mágico e pelo relógio Champion de pulseira cambiável, jovens adultos puderam voltar a ler quadrinhos com o melhor “a figurinha é pro meu filho” de todos os tempos:

– Isso não é gibi, é graphic novel!
(Até porque arte sequencial não convencia muita gente e explicar dava muito trabalho)

E por aqui?
Pessoalmente, acabo sempre misturando datas de lançamento ou de quando li alguma coisa. Por isso minhas impressões sobre o período podem não ser tão precisas. No entanto, como testemunha, mesmo que pouco confiável, posso acrescentar alguma subjetividade aos números frios.

O ponto mais difícil aqui é reconhecer que até aquele momento não éramos muito familiarizados com nomes de roteiristas e desenhistas. Posso estar equivocado, mas imagino que poucas crianças ligavam para quem fazia o quê. Meu “conhecimento”, pelo menos, não ia muito além de Jack Kirby e Stan Lee.

Isso mudaria com uma história do Demolidor. A parceria entre Frank Miller e David Mazzucchelli em “A Queda de Murdock” (1986) foi um divisor de águas, algo que nos fez passar a prestar atenção no nome daqueles caras.

“Elektra Assassina” (1986), de Miller com Bill Sienkiewicz, foi algo muito além do que estávamos acostumados. A linguagem truncada, o sangue exagerado e o conceito gráfico livre de amarras atraíram leitores que haviam feito a transição para o “mundo adulto” e até mesmo os que não eram afeitos ao gênero.

“O Cavaleiro das Trevas” (1986), vôo solo de Miller – que também desenhou a trama – estabeleceu seu nome como um dos maiores criadores desta arte.

Aproveitando a onda, a Abril lançou a série Graphic Novel (1988-1992), responsável pela primeira impressão de “A Piada Mortal” por aqui e de títulos como “Batman – O Filho do Demônio”, “A Era Metalzóica” e “Homem de Ferro – Crash”, que se vangloriava de ser a primeira revista feita por computadores.

O efeito prático disso tudo? Gente com barba lendo quadrinhos, de todos os tipos e nacionalidades. Laerte, Glauco e Angeli se tornaram estrelas de primeira grandeza em revistas como Circo e Chiclete com Banana. A revista Animal reunia de Ranxerox a Peter Pank. Moebius desenhou uma história do Surfista Prateado. Will Eisner continuava sendo Will Eisner. Enfim, numa escala banguela, tudo que viria posteriormente, como o selo Vertigo da DC, em 1993.

Concluindo
Tenho como recordações queridas os manuais do Tio Patinhas e dos Escoteiros Mirins, mas não pretendo voltar a lê-los (embora reconheça que os nós dos escoteiros podem ser úteis em acampamentos, festas de bondage e holocaustos em geral).

Apesar disso, acredito que foi por meio de sua leitura que hoje sou capaz de apreciar o trabalho de Joe Sacco sem qualquer tipo de preconceito, percebendo que seu traço nos ajuda a entender o drama vivido pelos palestinos de uma maneira muito mais vívida que muitas fotografias e filmagens.

As graphic novels, hoje, são livros encontrados em qualquer livraria, especializada ou não. “New York”, de Will Eisner, “Asterios Polyp”, de David Mazzucchelli, “Diomedes”, de Lourenço Mutarelli, “From Hell”, de Alan Moore, “Jimmy Corrigan”, de Chris Ware, “Genesis”, Rober Crumb, “Notas Sobre Gaza”, de Joe Sacco etc. Trabalhos que dividem a estante com clássicos literários sem o menor constrangimento. E que, eventualmente, recebem de braços abertos heróis com a cueca por sobre a calça para matar a saudade.

Ah 1
Ah, só para reforçar o argumento, apresento como evidência “A Saga do Monstro do Pântano Vol.1”, do Alan Moore, recentemente relançado e que traz junto ao código de barras a seguinte advertência: “Desaconselhável para menores de 18 anos”.

Ah 2
Ah, enquanto ainda há tempo: 1986 foi um puta ano pro Frank Miller, que depois ficou meio lelé e reaça.

*anos da lata  Apropriação pouco sutil e equivocada da expressão “verão da lata”. Ver também “navio panamenho Solana Star” e “um grande abraço pro meu amigo carioca que me mandou um presente lá pelos idos de 1987”.